quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Resenha "Passos ao redor do teu canto"


                     Resenha “Passos ao redor do teu canto” por Raquel Naveira


A citação de Osman Lins, que abre o livro Passos ao redor do teu canto, de M. Carolina De Bonis, começa assim: “O que repousa invisível, sob nossos passos: colunas, deuses esquecidos, tíbias ancestrais, minérios, fósseis, impérios em silêncio.” Estão aí as pistas por onde percorrerão os passos dessa poeta andarilha, cujo périplo sempre a fará retornar à sua morada interior, à sua casa, à sua ilha de Ítaca.

Aonde levam afinal os nossos passos? Quando entramos, por exemplo, num teatro pela porta do fundo procurando saber o que se oculta atrás do palco, das encenações, dos bastidores, o que encontraremos? Essa é uma busca de mistérios perdidos nos labirintos da memória.

 Damos os passos com os pés, “pés úmidos/arrastados pelas ruas”, “pés que tentam as noites por debaixo dos lençóis.” Caminhamos sozinhos sobre nossos pés ao redor do mundo, da sala, do lixo de nós mesmos, de nosso exílio.

Tudo está a “dois passos do que tem sido”. Momentos entre portas abertas, entre dois polos. Entre a infância e a maturidade. Entre a primavera e o outono. Entre a areia e o mar.

No poema que dá título ao livro, M. Carolina escreve: “Os amores se  insinuavam aos meus passos”. Passos que trazem perdas secretas. A alma anseia sempre pelo regresso: “Voltaríamos para a casa seguros./ Haveria volta nessa mesma hora/Haveria casa nessa mesma hora.” Lindo.

A poeta assume que os passos, embora firmes, são frágeis, caminham por pedras indiferentes. As nuvens ficam nuas enquanto ela ouve “música de pisares” e atravessa, ao viés do vento, como uma bailarina na ponta dos pés, entre capim e lírios.

Há fixação pelo espaço branco nunca antes palmilhado, pelas espumas e malhas fluídas das cascatas nos rios, pelo deserto, pela fronteira, pela outra margem, pelas casas onde morou na cidade, tão urbana e selvagem

Uma palavra para o projeto gráfico, diagramação e ilustrações de Leonardo Mathias: mandalas poderosas, marcantes, de flores, tambores, corpos humanos, filigranas de borboletas em mão espalmada. O toque lilás sob contornos negros.

De forma curativa, buscando o autoconhecimento, base de todo edifício espiritual e a partir das palavras de Osman Lins, que pressente sob nossos passos o rolar das estações dentro de uma estação mais ampla, M. Carolina De Bonis faz uma caminhada ao redor de seu canto. Vai para fora do dia, desperta do sono, em busca de perenidade e de feridas cicatrizadas em sua vida e na arqueologia de seus antepassados. Funda gerações.

 

 

 RAQUEL NAVEIRA é escritora, professora, crítica literária, autora de vários livros de poemas, ensaios, infanto-juvenis e romance. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e ao PEN Clube do Brasil.



 

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