sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Aprendizagens do dia


 

                                                               Ilustração Leonardo Mathias


 

Tudo se instala sobre a névoa
Da chuva de um tédio ou mais um dia
Sem qualquer aprendizagem.
Se encolhe lentamente sobre as almofadas
No modo a escolher algum animal marinho
A se parecer com seus pés úmidos
Arrastados pelas ruas, mas ontem,
Hoje, o nome lhe arqueja fósseis presentes
Ou a respiração de uma lula gigante
Mas não é nada ou são os sons minúsculos
Pingos que soletrassem a suspeita de
Alguma visita lhe trazer o passado por
Essa porta. A vida dos peixes se encolhe
Diante de um mar radioativo, seus pés
Tentaram as noites por debaixo dos lençóis
Sem qualquer movimento rápido.
Ela tenta se desfazer dos pequenos ventos
Do que a névoa não detém: aparições
Desfazer do que a vida não dá conta:
Essa infância interminável como lanças
De polvos destoando os objetos da casa:
A escrivaninha herdada, a boca esse vocábulo
De pântanos seu céu em estalos
Balbucia, mas é silêncio,
Convence ao que rebrilha nas frestas
Do fundo do mar, da névoa
Da chuva ou do cigarro
Do corpo que se move no duplo
Sendo-o na senda insuspeita
Dos objetos que lavram
Palavra vida
À concessão das pedras
Das grutas feitas apenas
Ao derramamento.












sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Orelha de livro











Passos ao redor do teu canto

Nesse livro, o poema cria uma dimensão de matéria e memória. De forma não linear, por meio de voos, mergulhos e aparições, refaz uma superfície antiga de uma paisagem primária, da procura por um instante poético original, onde ecoam rumores dos passos ao avesso, como se pousassem ao encontro de tudo ao que é nômade e decompõe.

Ao longo dos poemas, como passos primeiramente mais amplos, pela veia submersa da memória, esses curvilíneos fazem voltas na palavra para abrirem a cena e torná-la mais rara, condensada. Não se fala por meio de um ser poético, mas da conjunção com o outro, com as imagens da vida: “do corpo que se move no duplo/ sendo-o na senda insuspeita/ dos objetos que lavram palavra vida/ à concessão das pedras/ das grutas feitas apenas/ ao derramamento”. Nesse percurso, a imagem condensa uma semântica que perpassa como uma áurea do sentimento de continuidade, mesmo quando pousa em outros territórios, em outras terras, num fluxo aquático e sanguíneo, respira ao abrir novas camadas de realidade. Até que as águas modulem a voz ao simbólico, como se todo mar desaguasse na garganta e esse elo do real desfizesse a corda da matéria: “Curva-se a rasgarmos fluída/ a memória do mar, cada sílaba/ de água invadida das formas/ finas de caligrafia”. E a voz modula-se pelas letras, são as caligrafias nos lembrando, por fim, que é a linguagem que nos faz humanos e caminharemos num “tempo imóvel/ suspenso das coisas que passam/ das criaturas que passam/ na verdade que possa expressar/ que a verdade do ser é ter-sido”.  

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

E se deixou levar



Tocou num átomo cinzel de estrelas
Desfaz a alma sitiada num átimo de luz
E alumia, mas meu coração em metal
Acelerado acordado nos acordes dessa trama

Desfaz o laço da alma no papel
E soluça sem solução
O que refaz sua trama (na cama)

O desengano não se engana, prata de alumínio
A transplantar meus sentimentos
Para onde? Para a aura de uma anjo torto
Ao que veio? Amar

Toca antena luz
No coração dos peixes submersos
E do sobrenatural toca a alma
De outro mar. 

Uma espécie de perda




Foi-te uma espécie de perda
Começo como se perderam os dias
De uma infância. Falo-te assim como
Quem se despe do corpo
E chega recém-nascida
Aprendestes a respirar
Debaixo d’água e anos depois
Quando as folhas mudaram as estações
Mesmo emergisse dos ares
E nas ruas todos seguiam acontecimentos
Decadentes quando a ciência morria
Outra espécie de perda, mas você disse,
Nos fica os pântanos as botas enlameadas
A efêmera partida de rebanhos e hoje
Voltaríamos com as chaves para a casa
Pela rua do sol da infância. 

A origem ágrafa




Desterrar a origem ágrafa
A ecoar dentro do berço
De teu nascimento, como em renúncia
Curva-te a rasgarmos
Fluída cada sílaba do mar
Invadindo as formas finas
De caligrafias.

Depois, navegamos
Nesses feixes onde o tempo
Divide e corta
A tarde daqui a entrada
Da primitiva casa

As casas, dentro delas,
Um corpo que ainda fala.
O silêncio das sereias
Seria anterior ao traço da paisagem
Interna? À ausência de som,
As casas, dentro delas,
Um corpo que ainda fala:
Cada sílaba invadida de água
Cada passo submerso sem direção

Ainda que fragmentária
Desfaz-se o som com que ocuparia
Meu coração. Sons dos passados,
Nossos e ao redor.
Mas à entrada da primitiva casa
Cada passo, cada pássaro,
Derrama a ampulheta ao tempo:
Chega a hora de nos tornarmos eternos
Como se fosse estranho envelhecermos

Enquanto estou só, as casas possuem
Um exílio anterior.
Enquanto da janela
Acompanho-me de um quadro antigo
Desviado do alvo do tempo
No fundo há uma lágrima, mas se
Aproximas a vê-la dentro, é a criança,
A infância do menino que segue
Caminhando a história para trás.
Caminho de costas quando
Os desenhos contornam minhas bordas.

Os pássaros regressam. Anoitece,
Sobre os lírios de um céu
Apaga o sol outra estação
Nas primaveras noturnas das florestas
As plantas de outra sexualidade
Adormecem qualquer estação de origem
E em tempo (invisíveis)
Suas raízes crescem aos céus. 

Do arco da harpa



Do arco da harpa fez-te vértebra
Iracema, conjunção sonora de dois olhos
Movediços ao vento da força
Ao que contemplas mística.

Os mares de ti ornamentam rosas mastros
Constelações, pérolas e luz
Desfaz-te inteira ao contorno desses mares.

Ao que outros não percebem segue
Silente as raiadas do chão.
Onde recorto a ferida a cura

Reconstruída ao viés da ordem
Porque instaura novas sonoridades ao real
Como quem escuta do mar as orlas
Rosas em mediações ao meridianos.






As cidades que em mim somente passam

Lisboa tem gosto de mar
teu canto sorve o rio
deságua devasta latente
rosas na voz.
Acordo com a pele
acenando sal como se fossem
os sais coagulados de um adeus.
Aprumo os lençóis nas manhãs
para ser outra e ter a consciência
das terras estranhas estratagemas
para a chegada em cada palavra sonora
Quando escutasse numa comitiva
lugar algum de desterro exílio
que os objetos não tem o som
a que significam e de repente
os olhos lançados ao mar
distanciam ao coração.

Pelo vale industrial

Foi o som das colheitas como que inventassem acordes
O que novamente nos acordou. Em frestas
De um corpo a caminhar em silêncio pelo outro lado
Foi o som o que nos acordou, outra vez os passos fora do dia
Pelo vale industrial desabitado. Num imenso eco de vida profunda
Víamos multidões onde não as havia, as interlocuções com o vento 
Apenas rumores de bossa, uma elipse fechada do pensamento
Bolhas de esgoto industrial, oxigênio aos peixes do rio 
Morto, boi morto o verde seco da terra
A verdade sobre a verdade de um inseto que pousa
À sombra da gaivota que num lampejo desaparece.
Nesses dias, os sons eram mais altos que a ilusão
Noutros, tinham a voz, como que pudesse alcançar um Deus
E libertá-lo dos esgotos feitos de ferrugens, para que dentro dos acordes
Outros rangessem ruídos de inventar semeaduras eternas. 

Uma primavera fria para Bishop

O mapa Terras nômades o cajado da cultura não lhe circunscreve o contorno sua natureza singela soa algas nos olhos a pronún...