quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A perigosa poesia movediça (Resenha)


 


 

A PERIGOSA POESIA MOVEDIÇA DE MARIA CAROLINA DE BONIS: “PASSOS AO REDOR DO TEU CANTO”

 

Por Alfredo Monte

 (Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de outubro de 2016)

 
Levei um susto quando li os primeiros versos de PASSOS AO REDOR DO TEU CANTO (Editora Patuá): “Entrar no teatro pelas portas dos fundos/Esperar até que cortinas se fechem/Sentar-se numa cadeira detrás do palco/Baixar os olhos e soletrar um verso/Heroico com as formas de adeus”.  Pareceu-me algo decalcado do universo da grande Wisława Szymborska, Nobel de 1996, bastante em voga por aqui, pelo menos nas redes sociais (daqui a pouco, provavelmente surgirão os apócrifos).

Mas era um equívoco, pois Maria Carolina de Bonis apresenta uma voz poética muito própria, exercitando uma poesia “entre duas portas”; (“É cíclico o caminho”; o título já indica esse movimento). Ela parte de um estar-no-mundo, na casa, dos móveis, enfim nas coisas, regredindo a estágios minerais e vegetais, procurando “a origem ágrafa”: (“Chega a hora de nos tornarmos eternos/Como se fosse estranho envelhecermos”); são muitas as imagens de florestas, semeadora, colheita, algas, pedras, grutas, e às vezes temos uma impressão de imagens que se colidem desarmonicamente. Também é preocupante esse “olhar de exílio”, com que dispensa as camadas mais próximas da realidade: (“Vivo/onde as moscas contornam/minha ausência”).

Ao final de PASSOS AO REDOR DO TEU CANTO, nos damos  conta de que ele foi pensado não como reunião de poemas, e sim como um livro, o que absorve todas as supostas desarmonias; além disso quanto ao exílio, um diálogo latente perpassa todos os poemas, e ela nos sugere que margens, contornos, estão para ser transbordados e extrapolados: “Sou o contorno do testamento das pátrias/O desterro gutural dos nômades/Gruta movediça que nem em pedra cristaliza/O opaco do chão de terra batida//E uma aldeia para que pudesse inaugurar/Os lugares onde não estou/Soa além do contorno do cão/A invenção da sinceridade”.

Portanto, temos um contra-dizer: “Dizer está sempre fora do que dizemos/o ato se reproduz em deslocamentos/volta antes e me encontro depois/a língua se desdobra fora do contorno ao redor/dos teus lábios lentamente ao redor da sala meus passos”; ou ainda: “Eu não sou o que digo/Mas é como se fosse”; mais um exemplo: “A ida será um regresso/Desse lado, avesso/Do traço em linhas do excesso//Os contornos da carne/Habitando os limites do corpo/O gozo da terra/Teu corpo, agora/Nos guizos do vento”.

Uma das viagens literárias mais interessantes dos últimos tempos é acompanhar Maria Carolina de Bonis, em suas aventuras “Dos fios que se perdem dos fios/Que se atam”.  Tomara que o fio que seguirmos não nos leve para as conclusões inquietantes de Teu retrato: “Hoje meu espelho está vazio//Apanha-me em relances/Conjuga-me em silêncio/E soletra as placentas recolhidas//Ao canto do deserto/Na mesma margem/Que caminha a/Semelhança secando/Meus contornos”.


Alfredo Monte - Blog literário

Resenha "Passos ao redor do teu canto"


                     Resenha “Passos ao redor do teu canto” por Raquel Naveira


A citação de Osman Lins, que abre o livro Passos ao redor do teu canto, de M. Carolina De Bonis, começa assim: “O que repousa invisível, sob nossos passos: colunas, deuses esquecidos, tíbias ancestrais, minérios, fósseis, impérios em silêncio.” Estão aí as pistas por onde percorrerão os passos dessa poeta andarilha, cujo périplo sempre a fará retornar à sua morada interior, à sua casa, à sua ilha de Ítaca.

Aonde levam afinal os nossos passos? Quando entramos, por exemplo, num teatro pela porta do fundo procurando saber o que se oculta atrás do palco, das encenações, dos bastidores, o que encontraremos? Essa é uma busca de mistérios perdidos nos labirintos da memória.

 Damos os passos com os pés, “pés úmidos/arrastados pelas ruas”, “pés que tentam as noites por debaixo dos lençóis.” Caminhamos sozinhos sobre nossos pés ao redor do mundo, da sala, do lixo de nós mesmos, de nosso exílio.

Tudo está a “dois passos do que tem sido”. Momentos entre portas abertas, entre dois polos. Entre a infância e a maturidade. Entre a primavera e o outono. Entre a areia e o mar.

No poema que dá título ao livro, M. Carolina escreve: “Os amores se  insinuavam aos meus passos”. Passos que trazem perdas secretas. A alma anseia sempre pelo regresso: “Voltaríamos para a casa seguros./ Haveria volta nessa mesma hora/Haveria casa nessa mesma hora.” Lindo.

A poeta assume que os passos, embora firmes, são frágeis, caminham por pedras indiferentes. As nuvens ficam nuas enquanto ela ouve “música de pisares” e atravessa, ao viés do vento, como uma bailarina na ponta dos pés, entre capim e lírios.

Há fixação pelo espaço branco nunca antes palmilhado, pelas espumas e malhas fluídas das cascatas nos rios, pelo deserto, pela fronteira, pela outra margem, pelas casas onde morou na cidade, tão urbana e selvagem

Uma palavra para o projeto gráfico, diagramação e ilustrações de Leonardo Mathias: mandalas poderosas, marcantes, de flores, tambores, corpos humanos, filigranas de borboletas em mão espalmada. O toque lilás sob contornos negros.

De forma curativa, buscando o autoconhecimento, base de todo edifício espiritual e a partir das palavras de Osman Lins, que pressente sob nossos passos o rolar das estações dentro de uma estação mais ampla, M. Carolina De Bonis faz uma caminhada ao redor de seu canto. Vai para fora do dia, desperta do sono, em busca de perenidade e de feridas cicatrizadas em sua vida e na arqueologia de seus antepassados. Funda gerações.

 

 

 RAQUEL NAVEIRA é escritora, professora, crítica literária, autora de vários livros de poemas, ensaios, infanto-juvenis e romance. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e ao PEN Clube do Brasil.



 

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Despertava as águas


Despertava as águas

 
Despertava as águas o corpo derramava
perdia-se o contorno da pele e habitava a fronteira
do insuspeito. Todas as madrugadas
entorna um copo de água sente azulejos
espreguiçadeiras sem dar-se o nome
ao instante chamado na terceira presença
Nem fosse você nem eu quem acordou
com o nome da boca por onde as fases do rio
enchem ao que sobra arranja no assobio uma música baixinha
a dar vazante, os lábios tremendo tremendo quase desistindo diluindo
a letra esguia de uma carta proibida de um gemido ou ruídos
de alguém chamando repetidamente, os chamados de ajuda
a uma grande explosão. Antes das manhãs
quase sempre os caminhões de lixo e as rádios adotam estações fantasmas
A sala ainda guarda um piano mudo e gavetas inacessíveis
sem reconhecer a noite olhava pela janela um filete de luz
já não reconheceria nem a cidade, ainda bem dentro
saberia da prata de toda lua
somente ao despertar as águas.



 

O mar inteiro dentro da voz soletra sóis e chora como quem derrama cântaros


Na escuta de outros rumores

 

 

 

(o que se faz escuta de outros rumores
se inventa nos sonhos mais antigos).

 
Ao segurar uma lupa confere
Entre sombras essa matéria
De efêmero.

Aproximas aos sinais da terra
O nome a qualquer profecia
De futuro.

 Poderíamos nos agarrar em raios de sol
Vestidos de capas azuis celestes
A estampar em avenidas
Os sons desgarrados

 Entre o saber e o medo, uma saída
Aos abandonados
Aos que silenciam no olhar
O que percebe que entre a relva
Adormecem os sons os sonhos
As selvas e os gestos recolhidos
Por qualquer estação da existência.

Alguém ao longe ecoasse: fosse
Em tempo de colheitas
As semeaduras do estágio
Anterior a fragilidade.

Mas o futuro em flauta
Ascende na andança
Trajado de árabe mouro
Galopando mui eloquente
Desfiando em punho
A espada do destino a lança

Sobre o gesto e dança
O sinal da linguagem
Em consciência onde a palavra
Toma forma e desfaz
Da matéria iniciática

O seu percurso de borboleta
Negra metamorfoseada
Em asas andaluz refletidas
Em azuis, em dois olhos

A aprender a ciência secreta
A sombria névoa dos animais
Desgarrados do bando
Sozinhos, nômades, ao sol.

Uma primavera fria para Bishop

O mapa Terras nômades o cajado da cultura não lhe circunscreve o contorno sua natureza singela soa algas nos olhos a pronún...