quinta-feira, 2 de julho de 2020

Uma primavera fria para Bishop


O mapa

Terras nômades
o cajado da cultura
não lhe circunscreve o contorno

sua natureza singela soa algas nos olhos
a pronúncia da fruta mastigada
a mirada desfaz dentro do mar

seus passos viram nadadeiras
sua sutil armadilha de conquista
dentro das águas lentas
nosso amor, mulheres
na solidão do tal caboclo
imóvel em terra alheia sonhador
sabe que as montanhas ao longe
definem a paisagem do amor.

o sotaque estrangeiro era aquele do nome
pertencente imóvel dentre todas as bocas
devoradoras do ocaso.  

afagamos teus contornos distintos
teus peixes invisíveis teus cardumes
sonhando nome de cidades
inexistentes no fundo do mar.

há mais coragem em cidades de terras vizinhas?
pergunta de penínsulas que elevam a ponta
polegar adiante como cartografia de cores.

Terras nômades, invento a terra que o mar levanta
o vazio das absurdas falanges.

sábado, 20 de junho de 2020

Jardim do sótão



Jardim do sótão

evito o rumor dos automóveis
aprendo a respirar lentamente
o corpo desfaz-se pelos sete guizos do vento
a pergunta: qual terra a mover teus pés?
eu atravesso lenta pelo deserto
você entra em países que roubam tua imaginação
as ilhas mudam de lugar após a explosão
os sinais elétricos pairam acima de um poema bélico.

o rumor silencia o coração?
as estrelas perderam seu brilho, profusão de luzes
civiliza-se em procissão dos náufragos
embandeirando mares em sanguíneas manchas
o mar no corpo: paquetes apitam retorno.

Ouço Walt Whitman que sai a caça
de que meus olhos
não alcançam, com um giro abarca os caminhos
rarefeitos traduz às folhagens
o entender do irreal do corpo.

desfeita na dança do tango a contorcionista
confundindo-se com o verde de seres
que habitam a dimensão das folhagens
confundidas com o verde dos olhos
que não importam mais para onde vão.

estaríamos vivos na sombra de nós
entre os passos uma saída
para o pensamento de irreconhecível
terras a mover um silêncio que detém
o que só o coração diz.


Poema da conversão anterior

toda a conversão anterior
uma margem de manobra para armar
antigos brinquedos anteriores
o lapso que me retrai antigo
sobre o esquecimento de caligrafias
flores mortas quatro ilhas de exílio
dentro e fora as vértebras
de um abandono sonoro de alaúde.

dele saber tão somente a perseguição
o núcleo de se saber inteira pertencente
na manobra que margeia
o que de mim se exclui.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

A escrita meio galopante


o eterno mistério:
do que fizemos hoje há um ano atrás
nesse mesmo dia, gravaram-se peles no ar
um vão abissal de perdas e pássaros
na respiração a diáspora do gesto
navios entre acenos
estranhas geometrias pairam
nas íntimas despedidas.

a escrita meio galopante
como se me faltasse no trote do ritmo
a lembrança de que sim:
Robinson Crusoé chama do primitivo dentro
quando exploro os caminhos
também me atrevo para trás, até o buraco
dos tempos coloniais, assim pronta,
faço uma canção para cinco séculos
andar a cavalo, cair no buraco
uma experiência sem retorno.

sim, inventar a linguagem primitiva
de uma colônia. Ser quem inventa
no cavalo os pensamentos do vento
para saber do misterioso caminho. 

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Para Frederico Garcia Lorca


Para Frederico Garcia Lorca

os vales escuros de Lorca
arabescos sentinelas silentes
o vento uiva quando se crê nas grandes crises
as forças telúricas do mundo
que estão fora do mundo do pensamento.
exercício do corpo a colocar-se de lado
do olho pousado numa nuvem
a fazer sombra no pátio de uma piscina
azulácea (nuvens azuis, o céu).

o hospital psiquiátrico mudava
pelo corredor verde claro
a sensação verde claro
da sensação de vida esvaia.
ela chega presa por uma camisa
que a prende nos braços chora
na enfermaria com cheiro eu penso
nas pessoas com seus corações
instáveis, penso no coração do filho
e do irmão e estou aqui querendo
transgredir além da dose
exata do desejo que penso que controlam
o que faz uma pessoa desobedecer?
o que faz uma pessoa obedecer?
eu penso no sol entrando frio
pela janela de um dia nessa cidade
eu penso como a luz se move
enquanto minha mente também se move.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Pequenas equações para o sol



Pequenas equações para o sol

algumas mulheres não sonhavam
em outra língua antes de nascerem
qual a melodia para a memória
qual a melodia para as armadilhas
da essência do retorno?
Do duplo caminho envolto da floresta
ela escolhia o lado de fora do delírio.
Ir pelo outro lado e fundir o dia na noite
ou a noite no dia. Fundir o fora no dentro
ou o dentro no fora. Fundir um círculo
noutro círculo e recolher na sombra das árvores
o som da fusão entre a madureza e o estio
de inventar uma saída nômade
para as pequenas equações do sol.

Quando o hipnotizador entra em cena


Quando o hipnotizador entra em cena

quando o hipnotizador entra em cena
basta acreditar em sua missão
para que todos fechem os olhos
se movam feitos peixes cardíacos
no mar agitado a atravessar a correnteza
no prenúncio do código:
o hipnotizador sempre observa
uma margem de manobra imensa
a natureza errada do poema
no absorver da seiva gasta sabe
das influências dos poetas
em sua veia homicida.
Quando o hipnotizador entra em cena
muda o poder dos pensamentos
como o regente da orquestra
inicia um concerto musical imaginário.

ele a faz pensar num poema a partir
da outra língua, ela pensa
no poema a partir de sua língua,
como quem traduzisse o personagem
como um outro a partir do que
se imbrica em seu cerne,
a composição instantânea corta a cena,
rasga a pele e sonha sem parar
até encontrar a rima correta.

sonha que mora dentro da caixa
de música, os corpos desabam
nos ouvidos visuais
o hipnotizador e a tradutora:
aprendem a passar desapercebidos
o contorno dos olhares perdem
seus invólucros de caligramas
escapam sempre mais fora do que dentro.
Já ter acontecido hipnotizar-se?

é uma cena quando o hipnotizadorentra.
Mas há alguém sempre
a duvidá-lo a interpelar a verdade do ato,
alguém que pensa em caminhos herméticos
ilhas, simulacros, grutas ou espelhos
no oculto desse momento
sem pressentir o que o levaria
à infância de um sentimento.

Da hipnose que transfere


Da hipnose que transfere

do alto você vê o que em mim cala
nos gestos do outro lado, não te vejo
somente simulacro ao que representa
alquimia das mulheres que guardam
a alma detrás do palco, para algum
script secreto, pescador de fundos falsos

experimentamos o palco para pura montagem
o tempo é real, mas os ângulos falsos.

quando do alto avista pássaros de asas leves
pensa que sou o que em mim está
passo perene como nas voltas
daquele prato de sopa que, certa vez,
vimos num restaurante tailandês
entre curvas claras as pessoas comem
os alimentos inexistentes com olhares quites
deliciam unidas um mundo de belezas ausentes.

o branco sobre o branco sobre o branco
sombras retas e uma mulher encostada no divã
uma curva real e um segredo fabricado.



sábado, 29 de fevereiro de 2020

Terras nômades ao sol


construo uma imagem
para as transparências dessa ciência.
revisto a pele com os ossos da memória arco antes das
descobertas, o abrir na espera
do vão metafórico entre:

o que não se aprende nem se ensina
mão que se retira silente
apalpa os cabelos da mulher
nas águas do rio
que permanece obscuro.

você diria um texto feito de verdade prontas?
num grito primal, não acredito
na solidão anterior ao grito, nem
em espasmos que ausentes atravessam
essas margens.

deve haver transparências no que
se escreve. Dos automatismos sons
da máquina de escrever
à queda anterior ao som,
no que desaparece, desfaz
ao simples toque de dedos.

capaz de pronunciar uma letra
e saber de ti, não acredito em
qualquer emissor. Caminha
nas esferas do rio
sabe que só precisa de um invólucro
para caber as valises do que pode até romper
com as mãos. Saturno –
embaralha a ordem
dos objetos dentro do texto
e a trilha de verdades prontas
são todo um enredo de transparências
a ponta de um mistério que se
deve seguir:

o nível consciente e inconsciente
a marcar único trajeto
no princípio fim
resto do grito primal onde
ouve-se o solene cravo
na boca insígnia do nome
ao avesso germe drama desmorona
de tom e tom atinge
cascais cravo no que diz
dentro da voz a foz
inteiriça na garganta serpente
mentira do restauro cor destituída
do dito que não se entende
mas capta verdades.

agora que entramos em outro
território, as verdades prontas
são invólucros contra as inquietações,
não há memória que adormece
os enredos, são espécie de intuições.

naquela noite ele dissera os enredos
são os pedaços de nossas feridas.
como se soubesse nessa vida
só mesmo um itinerário de rotas
cortadas. Pergunto se
as histórias contadas são
hiatos de nossas descomposturas
sempre adivinho antes de dizer
o vocábulo gritam abram as portas
dentro dela palavra mansa pela qual você
caminhou para fora jardim íntimo
das delicadezas interrompidas.

talvez, você também não suportasse
uma casa que secasse seus contornos
como a morada pássaro seca
 sua ordem natural por afluentes.
a casa pedra que tentasse adentrar
sem ainda a fala das artérias
terra por onde recolhemos
o tempo por debaixo
de nossos poros.

invento voltas para que você não me veja
não precisa dizer de como gosto de ouvir
as mesmas historias sendo contadas
por personagens diferentes
quando o epílogos são sempre dentro
da geometria de um sol longínquo
ser semente é ainda um ventre
de destinos incertos, sugar a maré
comporta átimos de um gesto.

com o tempo
ela se aproxima com olhos de cavalo
seu cérebro pensa em uma resposta
tudo isso porque foges de mim,
foges de ti, não vês
sendo fogo que crepita
o que dentro se queima?
cavalos não aninham
o dorso imóvel dentro de si.

ainda estava dentro dela e disse
sou os espasmos da memória
o que nasce fora de mim
não será o esmo do ser
que te transita pela casa.

ainda uma espécie de assombração,
saberia pelo trauma que caminha enterrado,
escrever dentro a rasura do ventre.
mesmo que ele fale os poemas
são as transparências pelas quais
gosto de ver o mundo,
ainda há muitas arqueologias
 a se revelar.  

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Restituir escombros



Apenas restituir os escombros de uma avalanche
uníssono o escombro de três dias.
naquela noite, foi ele quem disse todas as noites
são espécie de retalhos de outros lugares
ela disse, todas as noites agora que estou livre
de todas as infecções estou livre como o anjo
choro a beleza por cima dessas linhas e pudera
ainda que privada ter a movência das alças de todas as extremidades
os seios escuros da família logo fora a primeira a lhe tocar aquela que iniciara
na língua o gesto que ocuparia a letra crivada ou uma teoria
que lhe revestisse o corpo gostava de fotografar-se nua
entre os espelhos tudo isso lhe passou pela mente
quando ele perguntou por que foges de mim
não vês sendo fogo que crepita
permanece vias a desmanchar
ainda estava dentro dela e disse
sou os espasmos da memória
o que nasce fora de mim
não será o esmo do ser
que te transita pela casa.

A voz estava sozinha

- A voz estava sozinha - disse minha mãe, ainda eu estava no seu ventre, a ler-me poesia.
- Não por muito tempo - responderam àquela que me iniciava na língua. E eu nasci na sequência de um ritmo. Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro percurso, não sei o que existe, o caminho caminha, eu deslumbro-me quando o tempo se suspende, e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo (...)

Maria Gabriela Llansol - Onde Vais, Drama - Poesia?

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Invento que tenho vizinhos



Aqui de cima vê-se os que caminham pela mesma avenida
Hoje, invento que tenho vizinhos para o que sabem de mim
Seria a composição de uma filarmônica suas bocas
Movediças com todo magma explodindo dentro
Ouve-se daqui: sabia que iria matar veja, ele morreu
Faço um pacto com o primeiro ofício
A porta é a entrada para o camarim
Um teatro: eles gritam, morte
Um branco cheio de adeus.
Hoje resolveram que as mãos da mulher de vermelho
Ficaria toda a tarde exposta a janela
Eu acenando os contatos dos que querem sair da ilha
Escrevendo a defesa dessa mulher, um legado
Matou por legítima defesa, ele o homem
Veja bem, por quanto tempo ainda terei de aguentar aqui
Entre as presas entre as dobras com a gota quente da planta
Que decai visão inóspita.
Deserta, garrafas, pombos correios, estruturas de cal
Arquitetam a mínima diferença nenhuma resposta.
Seus ouvidos sempre atentos
Precisam que fale baixo para que não me percebam
Se olho tanto desenho pelos becos outro município dentro da tarde
O céu pede para que eu lhes lembre ainda é verão
As histórias estão fartas por se acabarem
O traço errôneo de um script dizia em suicídio
Mas se não faço do passado pedra como pode
A mulher de vermelho mover além dos braços em esguelha
Vou a mostra e ensino em público como se devem comportar
Cavar um túnel de visão e apontar legado em forma de melodia
A tarde cava céus. Não percebem?
Os bons anfitriões sequer olham
Invento e faço crer que se lançam o olhar
Aqui dentro desse não há obstáculo algum
Para não se ver que mora dentro a contorcionista
Confundida com o verde dos seres que habitam outra dimensão
Atento para que não a confundam comigo
Atento para guardá-la escondida com todas
As obsessões desse século
Invento que há alguns anos de maior silêncio
E enquanto não me vem, posso ficar dentro dele
De resguardo ou esguelha.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Ao avesso das coisas que não existem mais


I.

 

Tenho um atlas no avesso do corpo
nos poros da pele outro caminho
pelo chão de terra batida. Rachadura
que finca e não ata outros ares?
Terra seca me contenho no sertão
quando o mar me empurra ao exílio,
seios bélicos fincam dores ao anúncio
do prepúcio, não sei se em preto ou branco
névoa que encolhe ao real, todo caminho
estrangeiro reinventa mapas
quando vou ao avesso de mim.

 

 

II.

 

Você com pinça capta as cores do dia
mas chega sempre com uma cor dentro
interpela o tempo que cintila
a fala livre vai além do primeiro ato.
Movediça, você é solta quando me segue
tem rastro na língua do orvalho anunciando
a púrpura da manhã. Mimetismo do mesmo
quando tudo existe com maior intensidade.

 

III.

 

Se todo livro fosse uma história
de paixão por um outro livro
Miss Cyclone viveria no lugar
da mulher do marinheiro.
Além, do último ato
de onde avistamos as cortinas
se fechando, veríamos as lascas
de paredes e o cantar pelos bastidores
de quem nunca desafina, tom sobre tom
a memória pela memória acompanha
ao piano ao fundo, um edifício
se constrói de passados? Apenas teatro 
daqueles que habitaram todo ato contínuo.

 

 

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Outro lado da floresta



O outro lado da floresta

seguiremos pelo outro lado da floresta
talvez haja perigos demais para que me mantenha
impassível. Qual parte recortada no jornal
escreve sobre o lado da história que não se repete?

no fim, sua escolha é apenas mais uma
feito dizer flor alheio sem querer-se ingênuo
ou como se fosse a primeira vez que pisamos
nessa zona fantasmagórica de rosas. O mundo
não vale o mundo? Jogo.
Eu não jogo, deixo o corpo
como quem se despe ocultamente.

não é preciso fechar as mãos
como ato de proteção
saber abrir dedo por dedo tocar
essa curvatura, apanhar migalhas
nesse sótão, apalpar o mundo
dispensando a luz elétrica baixar o tom
como quem ouve algumas mortes
encontrar-se dentro da terra
cavar origens curar o dom
para despossuir-se. 
       

Uma primavera fria para Bishop

O mapa Terras nômades o cajado da cultura não lhe circunscreve o contorno sua natureza singela soa algas nos olhos a pronún...